Passagem de Lampião por Custódia

sábado, novembro 17, 2012





Quando esse fato ocorreu, Custódia ainda era uma vila pertencente a atual Sertânia, antiga Alagoa de Baixo. Lugar aconchegante e simpático, de uma gente bastante ordeira, dedicada ao comércio, a agricultura de subsistência e criação de bode.

É uma das cidades sertanejas que mais têm se destacado como lugar de paz, mesmo quando o restante da região sofre com atormentadas encrencas de famílias, que levam muitos à morte. Em Custódia, mesmo com os problemas que lhe são pertinentes por ser uma cidade igual às outras em qualquer parte do Brasil, o sossego reina.

O dia vinha amanhecendo – 11.02.1925 – como outro qualquer. Mas quem ia abrindo a janela ou a porta de casa ia tendo uma grande surpresa ao se deparar com um grupo de cangaceiros em plena praça. Uns sentados no chão, outros escorados nas árvores, na maior tranqüilidade que se possa imaginar. Quem vinha passando para ir ao açougue comprar carne ou verdura apressava o passo com receio que pudesse acontecer ao dar de cara com Lampião e seus quarenta cabras.

Nos arredores que dão acesso as estradas da vila encontravam-se pequenos grupos de três ou quatro cangaceiros para dar segurança aos que entraram na rua principal.Essa tranqüilidade dos cangaceiros devia-se a Lampião estar informado, misteriosamente, não se sabe como, que os praças do destacamento local haviam fugido logo antes do amanhecer, na chegada dos visitantes, avisados por alguém. Ficaram apenas dois, que naquela noite não estava dormindo no quartel, e sim em suas residências. Eram eles, João de Paula e Pedro Soares. Esse último era um negro apelidado de Capuxu.

As autoridades do campo da política também haviam fugido sem tomar nenhuma medida. Eram os senhores Ernesto Queiroz e Dr. Tenório. As poucos as pessoas foram se chegando e conversando com os cangaceiros, a meninada com toda sua curiosidade fazendo mil e umas perguntas e eles respondendo, contando histórias para impressionar os presentes que ima se aglomerando mais e mais a cada instante. Quando a cidade já estava totalmente acordada os cangaceiros se espalharam em turmas e foram para as bodegas fazer compras, beber cachaça, e tudo era pago corretamente.

Lampião, acompanhado de seus irmãos Antônio e Livino, e de seus cabras Luiz Pedro, Félix da Mata Redonda, Fato de Cobra, Chá Petro, Chumbinho, Sabino, Sabiá, André e Jurema se dirigiram para os maiores comerciantes do lugar, Zé Moura e Zé Rouxinol, deixou claro que aquelas passagem por ali era apenas para aquisição de munição, mas casa não tivesse a munição aceitava o dinheiro para comprar posteriormente. Em toda casa ou pessoas que encontravam e pediam dinheiro, explicava o Rei do Cangaço:

“-Arrepare não a gente ta pedindo assim. É porque o governo num dêxa nóis trabaiá”.

Ao chegarem numa casa encontraram o soldado Capuxu e pediram a arma.

“-Só eu indo buscar no quarté”.

Respondeu, sem titubear, o milico.

Lampião disse:“- Se tivesse mais macacos com você, era capaz de brigar com meus meninos?”

Como se diz aqui no sertão, a resposta foi em cima da fivela.

“- Sim. Cumpriria meu dever até a morte”.

E acrescentou:

“- Se estivesse num grupo de cangaceiros também faria a mesma coisa”.

Lampião sorriu e mandou o soldado ir embora sem constrangimento. Assim que o militar retirou-se, o chefe dos cangaceiros virou-se para seus cabras e disse:

“- Home desse tipo tem que ficar vivo para tirar raça de gente valente”.

Enquanto Lampião circulava pela vila conversando com os comerciantes e pessoas influentes do lugar, o restante da cabroeira, pelas bodegas, no meio da praça ou onde estivessem, eram alvo de admiração de muita gente. Aqui e acolá alguém pedia para dançarem um pouco de xaxado, e dançavam com satisfação. Alguns rapazes e meninos procuravam imitá-los arrastando o pé no ritmo da “dança de cabra macho”.

Ao atravessar a rua encontrou Valdevino Alfaiate abrindo sua alfaiataria. Cumprimentou e pediu para olhar o mostruário. Enquanto olhava os tecidos o mestre da tesoura perguntou:

“- Lampião, é verdade que esses homens são muito valentes?”

Rindo, respondeu:

“- Home, qui us cabras são atrevidos, lá isso são. Mas comigo eles já sabem como são as comidas…I têm que comê sem inguiá”.

Agradou-se de um certo brim e perguntou ao alfaiate se seria possível confeccionar um terno para entregar ainda naquele dia, puxando até a boca da noite. Respondeu que sim. Em tom de voz bastante calma e branda, Lampião teve o cuidado de dizer:

“- Se você acha que fazendo esse trabalho pra mim, pode causar problemas pra sua vida, então não faça. Não tem problema nenhum”.

O profissional disse apenas que faria aquele terno com o maior prazer e iria, a partir daquele momento, mobilizar toda a sua equipe para entregar na hora desejada. Foram tiradas as medidas e puseram mãos a obra.

Saiu da alfaiataria e rumou com seu grupo para a mercearia de Jovino Costa Leão, onde estava outros cangaceiros bebericando e cantando, ritmando com palmas. Lampião dançou um dos passos de xaxado para umas moças que estavam olhando de longe.

Agora se dirigia para a farmácia quando encontrou o coletor José Guilherme, que a partir desse momento andaram todo tempo juntos, fazendo as visitas.

Na farmácia, pertencente ao farmacêutico Joaquim Pereira da Silva, comprou mercúrio, gases, comprimidos Bayer, pagou e pôs o pacote das comprar no bornal. Pediu ao mesmo que verificasse uns dois cangaceiros que já poucos dias foram feridos num tiroteio acontecido em Cachoeira dos Galdinos, contra volantes de Betânia e Nazaré. Os ferimentos não eram graves. Vinham tratando até ali com casca, raízes e folhas, mas se agora estavam numa farmácia, nada como um especialista. Joaquim justificou que para cuidar de ferimentos, seu amigo e também farmacêutico, era mais preparado, e assim, chamou o colega, que tinha o nome de Manoel Cristovão dos Santos. Este demonstrou muita habilidade no que fazia. Cuidou dos ferimentos dos cangaceiros com muita maestria.

Lampião, que a tudo assistia, ficou admirado com a presteza, atenção e, sobretudo, com a aptidão em tratamentos desta natureza que o jovem Manoel demonstrava, que de imediato convidou a ingressar no cangaço, para ser o médico oficial do seu grupo.

A resposta foi negativa, mas mesmo assim, agradou mais uma vez ao Rei do Cangaço:

“- Lampião, hoje tenho família pra cuidar. Mas toda vez que precisar de mim pode me procurar. Se for o caso, pode mandar um dos seus meninos me avisar que irei na hora”.

Sempre acompanhado, Lampião chega agora à residência de um cidadão chamado Zé de Moura, cumprimentou toda sua família gentilmente, comeu uns doces e sentou-se numa espreguiçadeira na calçada. Disse bonachão:

“- Ô Zé, tu vive dizendo que eu num entro em Custódia, qui si eu vim aqui, morro”.

Antes do trêmulo pai de família dizer uma palavra, ouviu o complemento:

“- Deixe de ser besta, Home. Agora tô eu aqui na tua espreguiçadeira, na tua calçada…”.

Após uns quarentas minutos conversando a vizinhança e curiosos que vinham lhe visitar e prosear, viu passando uma pessoa que disseram ser o telegrafista. De fato, era o agente do telégrafo Kepler Lafaiete. Lampião chamou o rapaz e foram todos para o posto e enviaram uns telegramas para o Governador do Estado, Sérgio Loreto, com uma série desaforos, chamando o chefe do Estado de covarde e que mandasse o chefe do birô dando ordens, empurrando os soldados no fogo. Interessante, esse telegrama foi a única coisa que Lampião não pagou quando esteve em Custódia. Disse debochadamente ao telegrafista:

“- Não vou pagar esse telegrama porque o telégrafo é do governo. Além do mais estou enviando para o próprio governo. Se eu pagar estou roubando eu mesmo”.

Todos que estavam ai riram da caçoada do Comandante das Caatingas.

A noite vinha chegando e a maioria do bando, com Lampião à frente, chegaram na casa do comerciante Zé Rouxinol. Como fora combinado previamente, um farto jantar foi servido, com os cangaceiros se revezando na mesa com os que estavam montando guarda.

Já estava dando horas da noite quando Lampião chegou à alfaiataria e o Valdevino estava sentado em sua confortável cadeira aguardando seu famoso cliente. Este chegou, verificou a roupa, gostou. Não queria experimentar tirando o que estava vestindo. Abriu o bornal e tirou uma nota alta e pagou conforme combinado.

“- Lampião, pra mim o trabalho só é completo quando o freguês testa”, disse o alfaiate.

Lampião não contou conversa. Foi na camarinha, se desequipou todo e vestiu a roupa nova:

“- Está ótima!”.

Disse Lampião abrindo um sorriso. Foi motivo de alegria também para o mestre.

Despediram-se.

Em seguida o alfaiate fechou seu estabelecimento e foi apressadamente pra casa.

Quando os cangaceiros foram beber nas bodegas e mercearias, bater pernas pelas calçadas, conversar com as pessoas, até a madrugada chegar.

Quando Custódia dormiu, os cangaceiros desapareceram dentro das caatingas.

Trecho retirado do livro LAMPIÃO nem herói nem bandido A História, de Anildomá Willians de Souza, lançado em 2007 pelo escritor que é membro da Academia Serra-talhadense de Letras e da União Brasileira de Escritores/PE.

Contato do autor:
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